Pela sua importância, transcrevo integralmente o texto de Boaventura Sousa Santos na Visão de 24/11/05. Os destaques são meus.
Ética jornalística
A jornalista Judith Miller acaba de ser despedida pelo New York Times (NYT) depois de ter passado quase três meses na prisão por se ter recusado a identificar as fontes de uma fuga de informação sobre a identidade de uma agente secreta da CIA. Esta notícia parece algo paradoxal. Como é possível que uma jornalista de tão elevada exigência ética seja despedida por um dos jornais mais influentes do mundo? Mais estranho ainda é que não tenha havido nenhum movimento de jornalistas em favor da sua colega e muitos tenham manifestado as suas dúvidas acerca dos verdadeiros motivos do silêncio desta jornalista A explicação de tudo isto está no facto de Judith Miller ter sido a jornalista que mais prolificamente escreveu sobre as armas de destruição maciça de Saddam Hussein e mais zelosamente defendeu a tese de que tais armas existiam. Com fortes ligações aos neoconservadores que dominam a administração Bush, Miller teve acesso a informação confidencial que alegadamente justificava as suas reportagens e que pôde usar sob a condição de não a revelar, nem sequer aos próprios directores do NYT. Segundo alguns analistas políticos, a persistência e o dramatismo das reportagens da jornalista tiveram um papel decisivo em condicionar a opinião norte-americana, no sentido de apoiar a invasão do Iraque e em influenciar, no mesmo sentido, muitos jornalistas estrangeiros.
Ora nos últimos meses souberam-se dois factos importantes: não havia armas de destruição maciça no Iraque e a administração Bush sabia disso quando decidiu a invasão; as reportagens da jornalista do NYT foram parte de um esquema impressionante de manipulação da opinião pública e de produção de informação falsa que envolveu muitos meios de comunicação e jornalistas, não só nos EUA como no resto do mundo. O esquema envolveu o departamento de defesa, sectores dos serviços secretos, especialistas de «gestão de percepção» e de «manipulação da informação», contratados para o efeito, e ainda o Iraqi National Congress, uma organização de dissidentes iraquianos, criada pela CIA e dirigida por um exilado, Ahmad Chalabi, condenado por crimes económicos na Jordânia e hoje um dos homens-fortes do Iraque.
Os detalhes da operação começam a ser conhecidos e mostram como a informação foi transformada em arma e em alvo de guerra: notícias falsas, inundando as redacções de todo o mundo e incluindo segmentos televisivos com «embuste militar»; «operações psicológicas secretas», envolvendo o favorecimento dos jornalistas amigos, a demonização dos hostis e a desmoralização dos que tentassem verificar ou cruzar a informação; envio de equipas de técnicos de informação e de desinformação a países considerados estratégicos, etc., etc.
O NYT pediu desculpa aos leitores por se ter deixado ser «vítima» da desinformação. Mas terá sido apenas vítima? Em livro recente, Richard Falk e Howard Friel revelam que os 70 editoriais do NYT sobre o Iraque, entre Setembro de 2001 e Março de 2003, não mencionaram nunca as palavras «Direito Internacional» ou «Carta da ONU». Mas o problema não é apenas norte-americano. Alguns jornais europeus (incluindo portugueses) encheram-se de editoriais e de páginas fazendo a apologia da guerra e lançando o opróbrio contra todos os que se lhe opunham, com base no Direito Internacional e na informação já então disponível, alguma da própria CIA, de que não havia armas de destruição maciça no Iraque nem havia nenhuma articulação entre Saddam e a Al Qaeda. O NYT despediu a jornalista. O que aconteceu no resto do mundo? Algum jornalista confessou o erro ou foi punido? Alguém é responsável por esta monumental fraude contra a opinião pública mundial?