Uma grande biblioteca é um universo fantástico habitado por seres inesperados. Cada sala é um mundo, cada estante é um continente, cada prateleira que descobrimos revela-nos novos vales habitados, às vezes pelo que nos parecem monstros mas que se mostram sempre ser criaturas simpáticas com cujo contacto nos sentimos reconfortados e enriquecidos na nossa condição de homens.
Hoje encontrei um ser que me deu a conhecer uma carta do século XVIII do Superior da Ordem dos Dominicanos para o Prior do convento da Ordem em Aveiro. Deliciem-se:
«Reverendo Padre Presentado Prior do nosso Convento de S. Domingos de Aveiro
Chegou com toda a certeza à nossa noticia o deplorável estado em que a disciplina regular se acha nesse convento, pois que nele nada, ou quase nada, se observa do que determinam as nossas leis, nem pelo que respeita ao silencio tão recomendado por elas, nem pelo que pertence à decência da celebração das missas e dos ofícios divinos, que fazem um dos mais importantes objectos do nosso sagrado Instituto; nem, finalmente, pelo que toca à modéstia e composição dos hábitos exteriores e interiores, havendo muitos religiosos, que trazem coroas de clérigos minoristas com circílios, que mais propriamente se podem chamar cabeleiras, assim pela grandeza como pelos extravagantes artifícios de cortes sobre o pente, e outras formalidades profanas. E havendo também religiosos que trazem hábitos tão curtos por diante que podem servir às dançarinas das óperas, tudo para que os povos lhes admirem a delicadeza das meias e sapatos que usam.
O maior escândalo, porém, que com grande mágoa, nos chega aos ouvidos, consiste no egresso dos religiosos para fora do convento discorrendo pelas ruas dessa cidade sem companheiros, e introduzindo-se em algumas casas indecentes, ou porque nelas se frequentam jogos e assembleias impróprias ao estado regular, ou porque os habitantes delas são pessoas abjectas, de cujas conversações não podem deixar as gentes honradas e cordatas de presumir mal.
Finalmente, por cúmulo de relaxação, quando os religiosos se recolhem é já passado muito tempo de noite, estando a portaria aberta sem haver religioso grave de missa, que seja porteiro, nem ainda um leigo capaz, de sorte que vem a ser esse nosso convento ainda menos regulado do que a casa de um secular estragadíssimo.
Portanto, devendo nós obviar a umas tão escandalosas inobservâncias, ordenamos a Vossa Paternidade que inteiramente proíba a todos os religiosos seus súbditos, que vão a algum mosteiro de religiosas dessa cidade, nem ainda ao nosso de Jesus, sem que sejam chamados para confissões.
Para este ministério mandará Vossa Paternidade sempre os religiosos mais capazes e de melhor probidade, não consentindo que as confissões se façam em grades, fora dos confessionários, nem que depois delas tenham os confessores práticas algumas com as religiosas.
O mesmo fará Vossa Paternidade observar aos que foram dizer missa ao dito Mosteiro de Jesus, proibindo-lhes severamente que nem antes nem depois vão ter práticas com as religiosas e sacristãs à Roda da igreja. E dos que forem delinquentes nesta parte nos dará Vossa Paternidade pronto aviso.
Ultimamente, advertimos a Vossa Paternidade que faça a mais séria reflexão em tudo o que acima fica ordenado, considerando muito atentamente, com a certeza de que, obrando-se o contrário e chegando-nos a notícia (como indubitavelmente nos há de chegar), não ficarão impunidas as transgressões, como até agora, por infelicidade nossa se praticava, por causa das sórdidas remoras que algumas vezes embaraçavam a administração da Justiça, o que no tempo presente nos parece, não sucederá.
Confiamos do zelo, actividade e prudência de Vossa Paternidade, que fará executar sem a mais leve omissão, tudo o que acima deixamos determinado, para não dar motivo justo, a que procuremos outras providências mais eficazes para fazer cessar tão escandalosas relaxações.
Deus guarde a Vossa Paternidade & S. Domingos de Lisboa, 11 de Junho de 1774.»
Frei João de Mansilha, 1711-1780, A história escandalosa dos conventos da ordem de S. Domingos em Portugal: 1774-1776, Lisboa, Vega, 1983, pp. 25-26.