A querela dos cartoons de Maomé está a agitar a blogaláxia, a comunicação social e o mundo. E, por estranho que pareça, desta vez, a ruptura não se faz pela clivagem política habitual. Tanto vejo reaccionários como revolucionários a defender intransigentemente a liberdade de expressão, e tanto vejo direitistas como esquerdistas a apoiar a contenção e a necessidade de não fazer provocações desnecessárias. É surpreendente, dá que pensar e é isso que pretendo fazer. Talvez estejamos perante uma oportunidade de crescer em consciência, em cidadania, em humanidade.
Quando a querela começou, na minha habitual formatação de atitudes, achei melhor relativizar a questão, vê-la doutro ponto de vista. Além de afirmar um direito à liberdade de expressão, quis pôr à prova o fair-play do «nosso» campo – o cristão. Seria que daria para perceber que quando nos toca a «nós» nem sempre somos tão lestos a afirmar a defesa dessa liberdade?
Há 2 dias, pensava prosseguir na publicação de imagens blasfemas, desta vez avacalhando a pretensa virgindade de Maria. Alvos não faltam. Mas, resolvi parar. Chamem-lhe auto-censura, resquícios de superstição religiosa ou a constatação que estava a usar alvos errados.
No Ocidente, a religião está tão desacreditada que possivelmente não é nela que podem ser encontrados os alvos mais «sagrados». Os tabus actuais divergem de pessoa para pessoa mas estão mais secularizados. A bandeira, o «homem português», Portugal, serão talvez ícones mais sagrados que os cristãos ou os judaicos.
Parece que
a origem dos cartoons teve uma inequívoca intenção provocatória e a sua difusão no mundo muçulmano teve uma inequívoca intenção de o pôr contra o Ocidente. Seja como for, não altera em nada o fundo da questão. O cenário podia acontecer sem jogadas subterrâneas.
A nossa liberdade de expressão não caiu do céu – foi conquistada com muito sofrimento e muito sangue. E foi-se conquistando ao mesmo tempo – indissociavelmente ao mesmo tempo – que a tolerância. Não podia existir sem a tolerância. E, provavelmente, esta também não se teria afirmado como valor inestimável sem a liberdade de expressão. São «irmãs germanas».
Um jornal tem a liberdade de escrever ou publicar o que quer. Tem? Tem. Pode é ficar sujeito a processos judiciais. E às vezes é compelido a não publicar algo por uma acção cautelar, para evitar um abuso de liberdade de expressão previsto. Porque a lei prevê que há certas informações ou publicações, cuja publicação é crime. Dizer que há liberdade de expressão, sem mais, é generalizar o que é um pouco mais restrito. Seria o mesmo que dizer que há liberdade de usar uma faca. Há, mas se servir para matar alguém, o criminoso fica sujeito à acção judicial.
O jornal teve a liberdade de publicar os cartoons. Óptimo. Afirmou uma liberdade que lhe é cara, doa a quem doer. Se doer a alguém, isso significa que esse alguém está num estado de evolução sócio-politica atrasada, que não reconhece a supremacia da sociedade de liberdade em que vivemos. Problema dele. Que use os tribunais, se se sentir ofendido! Isto deve pensar o jornal e os campeões das liberdades que tenho visto pulular nos últimos dias.
O mundo muçulmano teve a liberdade de queimar embaixadas. Usa a liberdade como costuma usar o «povo» quando os poderosos o humilham – corta estradas, apedreja autocarros, incendeia sedes de partidos, pendura árbitros na trave da baliza. Os poderosos que usem os tribunais e vão descobrir quem foi. «Para lá do Marão, mandam os que lá estão!». Isto digo eu que tenho a mania de fazer paralelos.
Estamos muito orgulhosos da nossa cultura ocidental. Não temos a menor dúvida de que está a anos – luz das culturas dos outros povos. Achamos que eles vão ter que aceitar e respeitar os nossos valores. E o que pensam esses povos? Também estão certos de que a nossa cultura é superior? Possivelmente, não. Quem é o árbitro?
Eu, pessoalmente, estou convencido que estamos um bocado mais evoluídos em certos aspectos de direitos humanos e de tecnologia. Mas, acredito que um muçulmano esteja convencido da superioridade da sua maneira de viver e, até, da maneira como entende o respeito pelos outros.
O caldo está entornado e eu estou preocupado. Vejo as posições a estremarem-se e a lucidez a rarear.
Não me peçam a mim para tomar posição. Eu não tenho certezas definidas, neste assunto. E duvido da justeza das certezas dos que já têm as suas posições muito bem definidas.
- Defendo a liberdade de expressão.
- Compreendo perfeitamente a revolta muçulmana.
Está claro para mim que o binómio liberdade de expressão/tolerância evoluiu tão inextrincávelmente como os elementos Yin/Yang da filosofia oriental. Evoluiu no seio duma pequena fatia da população mundial. O seu alastramento para o globo será um efeito da globalização e será tão doloroso como o foi nas 13 províncias americanas do século XVIII e na velha Europa. Estamos e vamos continuar todos a pagar o preço em sofrimento duma conquista de tolerância a nível global. Acredito que é inevitável a propagação global da tolerância. Acredito que é inevitável o sofrimento associado.