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Universos Assimétricos

Uma História de Agressão

9.2.06

Doa a quem doer! 

A querela dos cartoons de Maomé está a agitar a blogaláxia, a comunicação social e o mundo. E, por estranho que pareça, desta vez, a ruptura não se faz pela clivagem política habitual. Tanto vejo reaccionários como revolucionários a defender intransigentemente a liberdade de expressão, e tanto vejo direitistas como esquerdistas a apoiar a contenção e a necessidade de não fazer provocações desnecessárias. É surpreendente, dá que pensar e é isso que pretendo fazer. Talvez estejamos perante uma oportunidade de crescer em consciência, em cidadania, em humanidade.

Quando a querela começou, na minha habitual formatação de atitudes, achei melhor relativizar a questão, vê-la doutro ponto de vista. Além de afirmar um direito à liberdade de expressão, quis pôr à prova o fair-play do «nosso» campo – o cristão. Seria que daria para perceber que quando nos toca a «nós» nem sempre somos tão lestos a afirmar a defesa dessa liberdade?

Há 2 dias, pensava prosseguir na publicação de imagens blasfemas, desta vez avacalhando a pretensa virgindade de Maria. Alvos não faltam. Mas, resolvi parar. Chamem-lhe auto-censura, resquícios de superstição religiosa ou a constatação que estava a usar alvos errados.

No Ocidente, a religião está tão desacreditada que possivelmente não é nela que podem ser encontrados os alvos mais «sagrados». Os tabus actuais divergem de pessoa para pessoa mas estão mais secularizados. A bandeira, o «homem português», Portugal, serão talvez ícones mais sagrados que os cristãos ou os judaicos.

Parece que a origem dos cartoons teve uma inequívoca intenção provocatória e a sua difusão no mundo muçulmano teve uma inequívoca intenção de o pôr contra o Ocidente. Seja como for, não altera em nada o fundo da questão. O cenário podia acontecer sem jogadas subterrâneas.

A nossa liberdade de expressão não caiu do céu – foi conquistada com muito sofrimento e muito sangue. E foi-se conquistando ao mesmo tempo – indissociavelmente ao mesmo tempo – que a tolerância. Não podia existir sem a tolerância. E, provavelmente, esta também não se teria afirmado como valor inestimável sem a liberdade de expressão. São «irmãs germanas».

Um jornal tem a liberdade de escrever ou publicar o que quer. Tem? Tem. Pode é ficar sujeito a processos judiciais. E às vezes é compelido a não publicar algo por uma acção cautelar, para evitar um abuso de liberdade de expressão previsto. Porque a lei prevê que há certas informações ou publicações, cuja publicação é crime. Dizer que há liberdade de expressão, sem mais, é generalizar o que é um pouco mais restrito. Seria o mesmo que dizer que há liberdade de usar uma faca. Há, mas se servir para matar alguém, o criminoso fica sujeito à acção judicial.

O jornal teve a liberdade de publicar os cartoons. Óptimo. Afirmou uma liberdade que lhe é cara, doa a quem doer. Se doer a alguém, isso significa que esse alguém está num estado de evolução sócio-politica atrasada, que não reconhece a supremacia da sociedade de liberdade em que vivemos. Problema dele. Que use os tribunais, se se sentir ofendido! Isto deve pensar o jornal e os campeões das liberdades que tenho visto pulular nos últimos dias.
O mundo muçulmano teve a liberdade de queimar embaixadas. Usa a liberdade como costuma usar o «povo» quando os poderosos o humilham – corta estradas, apedreja autocarros, incendeia sedes de partidos, pendura árbitros na trave da baliza. Os poderosos que usem os tribunais e vão descobrir quem foi. «Para lá do Marão, mandam os que lá estão!». Isto digo eu que tenho a mania de fazer paralelos.

Estamos muito orgulhosos da nossa cultura ocidental. Não temos a menor dúvida de que está a anos – luz das culturas dos outros povos. Achamos que eles vão ter que aceitar e respeitar os nossos valores. E o que pensam esses povos? Também estão certos de que a nossa cultura é superior? Possivelmente, não. Quem é o árbitro?
Eu, pessoalmente, estou convencido que estamos um bocado mais evoluídos em certos aspectos de direitos humanos e de tecnologia. Mas, acredito que um muçulmano esteja convencido da superioridade da sua maneira de viver e, até, da maneira como entende o respeito pelos outros.

O caldo está entornado e eu estou preocupado. Vejo as posições a estremarem-se e a lucidez a rarear.
Não me peçam a mim para tomar posição. Eu não tenho certezas definidas, neste assunto. E duvido da justeza das certezas dos que já têm as suas posições muito bem definidas.

- Defendo a liberdade de expressão.
- Compreendo perfeitamente a revolta muçulmana.

Está claro para mim que o binómio liberdade de expressão/tolerância evoluiu tão inextrincávelmente como os elementos Yin/Yang da filosofia oriental. Evoluiu no seio duma pequena fatia da população mundial. O seu alastramento para o globo será um efeito da globalização e será tão doloroso como o foi nas 13 províncias americanas do século XVIII e na velha Europa. Estamos e vamos continuar todos a pagar o preço em sofrimento duma conquista de tolerância a nível global. Acredito que é inevitável a propagação global da tolerância. Acredito que é inevitável o sofrimento associado.

posted by perplexo  # 23:58
Comments:
Só vim aqui para anunciar o próximo jogo, a realizar no Estádio das Trevas, entre as equipas de Cristo e de Maomé.
 
Meu caro.
Apreciei a sua visita e tive o prazer de ler este seu excelaente texto, com o qual concordo plenamente.
Apenas lhe queria fazer uma referencia, que possívelmente você não valorizará, mas que para mim faz toda a diferença: Se Cristo não tivesse defenido sem sombra de dúvida as diferenças enter o Divino e o Terreno (a César o que é de César, a Deus o que é de Deus), muito provávelmente esta nossa Europa evoluída, que por muito que não interesse a muita gente, tem uma matriz Cristã, poderia ter evoluído de maneira diferente e quem sabe se não seria neste momento formado por estados teocratas e intransigentes?
Sabe, é que eu acho que por muito ateísmo, agnósticismo e laicismo que grasse numa sociedade, a matriz religiosa é indissociável da cultura.
Cumprimentos cordiais.
 
Eu nunca acreditei nessa dicotomia redutora esquerda-direita. Por isso é que troço dizendo que vai haver um jogo Cristo-Maomé.
 
Obrigado a todos pelas vossas visitas e palavras.
Ó Henrique, parece que o Freitas do Amaral aceitou bem a tua proposta e também sugere um torneio de futebol entre europeus e islâmicos. Foi o que ouvi de "relance".
Ó "Velho", concordo que a componente religiosa desempenha um papel importante na formatação das mentalidades, mas estou convencido que a evolução ocidental se fez apesar da matriz cristã e sobretudo apesar da matriz católica. Mas pode ser que eu esteja apenas mais influenciado pela "lenda negra", que enegrece a contribuição católica para este "resultado final".
Abraços!
 
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