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Universos Assimétricos

Uma História de Agressão

25.1.07

À luz de Delft 


Agora que já passaram uns dias, já me sinto mais à-vontade para falar do assunto. Tudo começou na semana a seguir ao Natal quando cheguei a casa, depois do trabalho, aí pelas cinco da tarde. Despejei os bolsos, guardei o casaco e fui ver o comportamento da Bolsa no teletexto, enquanto me libertava dos sapatos. Nenhuma alteração de monta. Como ainda era cedo fui lanchar. Pus duas fatias de pão na torradeira, juntei um copo de leite e compota de ginja num tabuleiro e fui comer para a sala.

Foi já no fim do lanche que o vi: - o carteiro de Pablo Neruda, como eu me lembrava dele no filme, estava mesmo atrás da mulher que lê uma carta junto a uma janela aberta, na reprodução de Vermeer que tenho por cima da escrivaninha. Primeiro, fiquei muito parado sem saber bem o que pensar. Observei a compota, cheirei o leite – pareceram-me em bom estado.
Levantei-me e mirei-o de perto. Estava com aquele ar ingénuo e satisfeito de quem finalmente sabe o que são metáforas. E estava bem implantado na camada cromática, como se tivesse sido pintado ao mesmo tempo que a mulher. Esquecendo a discordância de vestuário não ficava mal de todo. Aparentemente, tinha sido ele que tinha trazido a carta à jovem holandesa de Vermeer.
Bem – pensei – é melhor não dizer nada a ninguém, sem dormir sobre o assunto. Vendo bem as coisas, ele não faz mal a ninguém. Até enriquece a história.
E fui ver o CSI para o sofá. Só vos digo, é quando se dorme melhor!

Quando acordei, a primeira coisa que fiz foi olhar para o quadro. O carteiro já lá não estava. Fiquei aborrecido. Já começara a pôr a hipótese de mostrar o fenómeno aos amigos. Logo a seguir, fiquei preocupado. O problema devia estar em mim. Alguma coisa estava a perturbar a minha percepção. Nessa noite, dormi mal.
Resolvi fazer umas pesquisas na Net do emprego sobre alterações de percepção. Foi só o que fiz na manhã seguinte. Um site francês dizia que níveis elevados de açúcar no sangue podem provocar alucinações.

Quando cheguei a casa, estava uma «menina d’Avignon» – a que parece um índio – em primeiro plano encostada ao cortinado do quadro de Vermeer e virada para a janela. Foi uma aparição menos agradável para mim, até porque agora já sabia que não era um bom sinal. Nessa tarde, fiz um lanche deprimente: uma tosta integral e água.

No dia seguinte estava uma menina de Boucher só parcialmente visível, ingenuamente nua, deitada de borco, a brincar com um dos frutos da fruteira. E nos outros dias sucederam-se outras imagens de menor dimensão – um jarrão azul com flores de Cézanne, um gato de Manet, um par de mãos de Rodin – enquanto a jovem continuava impávida a ler a sua carta. Algumas destas aparições eram-me agradáveis, outras nem por isso.

Entretanto fui ao médico. Impôs-me uma dieta rigorosa sem açúcares e receitou-me uns comprimidos de lítio. Diz que devo ter uma predisposição genética visionária que foi potenciada pelos excessos da quadra natalícia. Para eliminar todos os factores desencadeantes, aconselhou-me ainda a parar com leituras sobre arte durante uns tempos.

Já lá vão duas semanas desde que vi a última falsa imagem – um cavalinho amarelo de Franz Marc. Desde então não voltei a ver figuras a perturbar o recolhimento da holandesa de Vermeer.
Por elas, por algumas, tenho uma certa pena. Mas não se pode ter tudo, não é?

(Foto do quadro por alturas da aparição do gato de Manet)

posted by perplexo  # 03:01
Comments:
Mas que pena não teres visto um nu do Goya,
Um abraço. Augusto
 
Delicioso!
 
mas que mal faziam as invasivas figuras?
muito bom.
 
Gargalhadas, está uma maravilha:)))
Amanhã linko-te:))
bjs
 
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