A revista Visão está a publicar, por edição, um conto policial baseado num crime real. Cada conto está a cargo de um escritor reconhecido.
O desta semana é de Inês Pedrosa e deixou-me muito desconsolado. Está cheio de lugares comuns, é maçador, matraqueia em demasia a caracterização das personagens que são, às vezes, pouco verosímeis no discurso. E o final é assaz frouxo.
É certo que a tarefa de encaixar todos os factos relevantes conhecidos numa história ficcionada é mais difícil que criar uma história de ficção de raiz. Digamos que a história já existe mas é preciso contá-la de maneira não jornalística e um pouco diferente do que saiu nas notícias para evitar a colagem à notícia real e os eventuais processos por difamação. Mas esta história, feita assim, não é um conto. Chamem-lhe crónica, chamem-lhe narrativa curta, ou retratos psicológicos, mas conto é que não é.
Ao contrário do que pensa o senso comum, o conto não é a antecâmara do romance. É um género que não admite «palha». «Um conto é uma novela depurada de cascalho». A sua característica principal é a intensidade. Um conto precisa de um ponto alto de tensão e de uma resolução desse conflito tanto quanto possível inesperada, mas natural e verosímil. O interesse deve manter-se do princípio ao fim sem se desviar do objectivo. «É como uma flecha disparada para um alvo». «Todas as palavras que desviem o autor um milímetro do tema devem ser aniquiladas».
O conto é dos géneros mais difíceis de dominar.
O da semana passada foi escrito por Francisco José Viegas e começa assim:
«Há barcos que têm o destino traçado», disse o homem mais alto — o de óculos escuros — para o outro, que seguia atrás, com o charuto pendente dos dedos. Imaginara-o mais atarracado e mais magro, mas quando ele apareceu, nessa manhã, surpreendeu-o também que ele falasse tão pouco e tivesse aquele ar cansado de quem atravessou o país, ou pelo menos o Alentejo, para lhe dizer que estávamos em Agosto e que isso era uma grande contrariedade. Não foi bem assim. Mas na altura pareceu-lhe.
«Agosto é o mês mais fodido.»
Ele olhou-o então, de frente e de baixo para cima (porque estava sentado e o outro de pé) e não pôde deixar escapar um sorriso.
«E Abril é o mês mais cruel», disse Alexandre Monteiro, como se fosse a segunda parte de um diálogo, esperando resposta. Mas o outro não respondeu ao sorriso. Não respondeu a nada, aliás, limitando-se a acender o pequeno charuto com um fósforo que retirou de uma caixa.»
Perceberam bem quem é que fala, quem responde, quais as suas características? Eu, não! Tive que voltar várias vezes atrás para saber quem é quem. Só mais à frente fiquei com uma ideia. Parece um daqueles jogos de enigmas em que se indicam dados fragmentários de vários sujeitos para depois o leitor tentar resolver o enigma depois de uma grande dedução lógica, às vezes, com recurso a esquemas gráficos.
Se não, vejamos:
- O homem mais alto tem óculos escuros.
- O que segue atrás leva um charuto nos dedos.
- Um imaginou que o outro seria mais atarracado e mais magro.
- O mesmo constatou que o outro, que tinha atravessado pelo menos o Alentejo, falava pouco e tinha um ar cansado.
Donde se conclui que o que atravessou o Alentejo é alto e gordo. Será o dos óculos escuros?
- À primeira fala, um estava sentado e o outro em pé.
- Quem primeiro falou parece ser o que atravessou o Alentejo.
- A segunda fala é de Alexandre Monteiro.
- O que não falou em segundo lugar é que fuma charuto.
Finalmente, um dado relevante. Podemos então concluir que Alexandre Monteiro é alto e tem óculos escuros. Que atravessou o Alentejo, que é de poucas falas mas falou duas vezes seguidas.
O outro fuma charuto e não diz nada. Não se sabe quem estava em pé e quem estava sentado.
Cultiva-se aqui a escamoteação de dados, não sei com que objectivo. Interesse não traz e prazer na leitura muito menos. E, como que achando que está a exagerar na clareza, diz à sexta linha: «Não foi bem assim. Mas na altura pareceu-lhe». Com caramba!
Para que é que é isto?
Só para lá da linha 100 e a ¾ da narrativa é que condescende em ser claro: «Jaime Ramos chegara essa manhã…». Ok, Jaime Ramos é que atravessou o Alentejo, que teve a primeira fala, apesar de ser de poucas falas, e talvez estivesse em pé. Mas nessa altura o leitor já se está bem a borrifar.
~Não é bem assim, mas na altura pareceu-me.~