<$BlogRSDUrl$>
Universos Assimétricos

Uma História de Agressão

29.9.07

O retrato do juiz 


(Conto referido no post anterior)

O pintor olhava o retrato do juiz no cavalete e o seu olhar encontrava o olhar incisivo do retratado, muito firme, muito intenso. Parecia vigiar-lhe cada movimento. Era perturbador. O cliente já devia ter ido buscar o quadro há duas semanas e não havia maneira de aparecer. Júlio começava a ficar impaciente. Não que o dinheiro lhe fizesse muita falta mas o olhar do retrato inquietava-o. Cada vez que o olhava parecia encontrar-lhe novos aspectos fisionómicos. Como se tivesse vida. Era, sem dúvida, das suas obras mais conseguidas.

Desde novo que, nas suas mãos, as telas se povoavam de figuras, umas cândidas outras austeras, umas históricas outras que podíamos esperar encontrar na rua, representadas com uma naturalidade notável. Manobrava os pincéis com destreza como se já tivesse muitos anos de prática. Quase sempre fazia as misturas das cores na paleta mas, em obras de maior arrebatamento, aplicava as cores puras directamente na tela em empastamentos de força cromática avassaladora.
Com o tempo percebeu que o retrato próprio era das imagens que as pessoas mais prezavam e passou a especializar-se nesse género. Ao seu atelier da rua de S. Paulo em Lisboa acudiam militares, magistrados, catedráticos, políticos. Cavalheiros graves em fundo escuro e damas vistosas em toilettes requintadas nasciam nas suas telas. Os olhares eram sempre inteligentes, a pose sempre nobre e elegante. Ultimamente, a freguesia já não abundava mas Júlio, de sessenta e três anos escorreitos, gostava do que fazia e sentia que podia continuar a trabalhar indefinidamente.
O último cliente fora este juiz. Tinha querido pagar a totalidade do trabalho mas Júlio aceitara apenas metade. O resto seria pago contra a entrega da obra. Era um cliente fácil. Chegava sempre pontualmente às nove da manhã, no seu fato preto impecável, e mantinha-se firme na pose escolhida durante as duas horas da sessão. Era de poucas falas, mesmo no pequeno intervalo que faziam a meio.
O rosto, que era a parte mais delicada e o que dava mais trabalho, foi nascendo mancha a mancha nas carnações da face, pincelada a pincelada nos fartos cabelos grisalhos e nas sobrancelhas rectas e espessas. Ao fim de duas semanas, os olhos vivos e inquisidores do juiz acenderam-se na tela como se fossem reais. Pouco depois, Júlio disse ao cliente que só faltava rematar os fundos e que podia ir buscar o retrato daí a uma semana.
Tinham-se passado três semanas e o juiz não aparecia.

O retrato estava conseguido. Júlio olhava-o e não conseguia evitar uma inquietação difusa. Começava a tornar-se uma obsessão.
Não ficara, do juiz, com mais que o nome e a morada rabiscados num papel. Pensou em telefonar-lhe mas das Informações disseram-lhe que aquela morada não tinha telefone fixo. Resolveu procurar o juiz pessoalmente. Apanhou o comboio para Carcavelos e, lá chegado, foi perguntando até encontrar a casa do juiz. O que descobriu não podia ser mais perturbador.
Realmente ali era a casa do juiz, mas ele não estava. Nem ele nem ninguém. Perguntando à vizinhança soube que a casa estava abandonada desde que o juiz morrera havia quinze anos.
Deixou-se cair num banco de jardim e ali ficou sem tomar conta das horas, mergulhado num assombro de que não sabia como sair.

Desde então que Júlio não pinta. No primeiro mês após a traumática revelação, só voltou ao atelier uma única vez. Tornar a encarar aquele olhar foi aterrador. Podia jurar que o juiz o olhava de cenho mais carregado, num misto de tensão e recriminação. Voltou a face da tela para a parede mas Júlio continuava a pressentir a intensidade do olhar através dela. Sentiu medo. Saiu rapidamente do atelier, ofegante, sem saber o que fazer, sem vontade de voltar.
Em casa pensou que, se calhar, estava na altura de parar de pintar. Foi falar com um vizinho do atelier que em tempos se propusera comprar-lho para alargar o seu armazém de aprestos marítimos. Fizeram negócio, depois de o vizinho aceitar ficar também com o recheio.
Júlio recolheu-se à sua pequena casa de Montemor, sobranceira ao vale de Loures, disposto a desanuviar o espírito, mas não o tem conseguido. Passa as tardes na varanda, de olhar perdido no horizonte. Não consegue tirar da cabeça o olhar mau do juiz. Nem consegue entender que intuito teve ao voltar do outro mundo e lhe encomendar o retrato.


Por um desses dias, na sua casa de Setúbal, Armando levantava-se da mesa e, de copo na mão, improvisava um pequeno discurso para uma dúzia de familiares reunidos à volta do almoço dominical:
– Meus queridos, é com enorme agrado e orgulho que brindo convosco à próxima expansão da nossa pequena empresa. Foi um negócio bem sucedido de que todos saíram a ganhar, como gosto que sejam todos os nossos negócios. Ganhámos nós e ganhou o Sr. Júlio, que agora pode gozar uma bem merecida reforma. Era um grande artista. Vejam como ele captou o olhar austero do tio – apontava Armando o quadro na parede. – Aliás, quero fazer um agradecimento muito especial ao tio Antero pelo esforço que fez de ir todos os dias de manhã a Lisboa, fazer-se passar por aquele falecido juiz e posar imóvel durante tanto tempo. Sem a sua ajuda, talvez não tivéssemos conseguido o que há tanto tempo pretendíamos: a expansão do nosso armazém de vendas e do nosso negócio. Obrigado tio! E é claro que faço questão que fique com o quadro. Bem o merece! De qualquer modo, estamos todos de parabéns. Por isso peço que me acompanhem num brinde.
Todos se levantaram, de copo na mão, proferindo em coro a fórmula habitual:
– Todos pela família! A família por todos! Unidos!
O brinde terminou com uma longa salva de palmas que transmitiu ao espírito de cada um o enternecimento de quem se sabe participante no bom sucesso de um projecto comum.


Artur Amieiro, «O retrato do juiz», in AA. VV., Henrique Sousa (org.), Um Mar de Contos, http://www.lulu.com/, 2007.

posted by perplexo  # 01:23
Comments:
Gostei muito deste conto, creio que já referira que parece um filme de Hitchcock.
Força criativa.
 
Enviar um comentário

Archives

links to this post

agosto 2003   setembro 2003   outubro 2003   novembro 2003   dezembro 2003   janeiro 2004   fevereiro 2004   março 2004   abril 2004   maio 2004   junho 2004   julho 2004   agosto 2004   setembro 2004   outubro 2004   novembro 2004   dezembro 2004   janeiro 2005   fevereiro 2005   março 2005   abril 2005   maio 2005   junho 2005   julho 2005   agosto 2005   setembro 2005   outubro 2005   novembro 2005   dezembro 2005   janeiro 2006   fevereiro 2006   março 2006   abril 2006   maio 2006   junho 2006   julho 2006   agosto 2006   setembro 2006   outubro 2006   novembro 2006   dezembro 2006   janeiro 2007   fevereiro 2007   março 2007   abril 2007   maio 2007   junho 2007   julho 2007   agosto 2007   setembro 2007   outubro 2007   novembro 2007   dezembro 2007   janeiro 2008   fevereiro 2008   março 2008   abril 2008   maio 2008   junho 2008   julho 2008   agosto 2008   setembro 2008   outubro 2008   novembro 2008   dezembro 2008   janeiro 2009   fevereiro 2009   março 2009   abril 2009   maio 2009   junho 2009   julho 2009   agosto 2009   setembro 2009   outubro 2009   novembro 2009   dezembro 2009   janeiro 2010   fevereiro 2010   março 2010   abril 2010   maio 2010   junho 2010   julho 2010   agosto 2010   setembro 2010   outubro 2010   novembro 2010   dezembro 2010   janeiro 2011   fevereiro 2011   março 2011   abril 2011   maio 2011   junho 2011   julho 2011   agosto 2011   setembro 2011   outubro 2011   novembro 2011   dezembro 2011   janeiro 2012   fevereiro 2012   março 2012   abril 2012   maio 2012   julho 2012   agosto 2012   setembro 2012   outubro 2012   novembro 2012   dezembro 2012   janeiro 2013   março 2013   abril 2013   maio 2013   julho 2013   agosto 2013   setembro 2013   novembro 2013   janeiro 2014   março 2014   maio 2014   julho 2014   agosto 2014   janeiro 2015   fevereiro 2015   maio 2015   junho 2015   setembro 2015   outubro 2015   dezembro 2015   abril 2016   julho 2016   setembro 2016   novembro 2016  

Perdidos no Hiper-Espaço:

Em quarentena (Vírus linka-deslinka):

Desembarcados num Mundo Hospitaleiro:

Pára-arranca:

Sinais de Rádio do Espaço Cósmico:

Tele-transportes:

Exposição Temporária:


referer referrer referers referrers http_referer

This page is powered by Blogger. Isn't yours? Mail