Há pouco tempo, como se percebe pelos posts anteriores, passei duas semanas a andar de autocarro pela Itália, a levantar cedo, a calcorrear cidades e a aturar guias que decidem o que vamos ver. Ansiava por voltar para a Minha Terra, tão bela mas tão mal amada. Ah, quando chegasse, ia pôr o sono em dia e depois ia passar um mês inteiro a visitá-la, a conhecê-la, a amá-la.
Assim que cheguei, fechei-me em casa, cerrei as persianas e ferrei-me a dormir como se já não dormisse há semanas, o que não era completamente mentira. Queria recuperar o vigor, nem que para tanto gastasse mais dois ou três dias. Durante horas incontáveis, dormi profundamente, sentindo o meu corpo a relaxar, a distender-se, a ganhar as formas que a Natureza lhe queria dar. A certa altura, senti-me a ficar leve, solto, fluido. Acordei ar e vento. Achei um pouco estranho mas, longe de me inquietar, aceitei-me e foi sob essa forma que parti finalmente a conhecer a Minha Terra.
Iniciei a viagem muito lentamente, como leve aragem, percorrendo a sua superfície. Subi o Alentejo langorosamente, acariciando a planície, a contrapêlo. A Minha Terra parecia agradada. Mostrava-me de vez em quando o branco dos seus casarios. Avancei silencioso e morno. Balancei-me delicadamente no sobe e desce das pequenas elevações e das suaves baixas. Insinuei-me nos vales dos maciços centrais, explorando cada dobra, evaporando a geada de uma várzea aqui, ondulando o pasto de uma encosta acolá. Subi as serras atapetadas pelo mato, monte a monte, envolvi os cumes em névoa. Sussurrei segredos nas fragas. Dos talefes, alarguei a atenção a escolher outras explorações. Entusiasmado, desci os declives, mais apressado que na subida, fiz ondular a cabeleira das florestas, deambulei por entre os troncos majestosos. Soprei sobre as gargantas, os riachos e os açudes. Desci às grutas. Brinquei com a água das fontes e das lagoas, deixei-me arrastar pelos caudais dos rios. Humedeci, liquefiz-me.
Agora eu era mar. As minhas ondas batiam nas arribas, lambiam as rochas de baixo para cima e estas ficavam a escorrer, lascivas. As vagas do meu corpo recuavam e logo voltavam altas e empenhadas. No Algarve brincavam por entre as rochas esburacadas, a fazer cócegas à Minha Terra. E ela a provocar, a abrir enseadas, a elevar promontórios, a estender cabos, atiçando o meu corpo líquido. As suas areias a arder, a chamar pelo meu afago refrescante. E eu fluía e refluía sobre as areias da Minha Terra, uma e outra vez, afagando-as numa dolência de amantes. No Minho a arrepiá-las com as minhas carícias geladas. E a entrar atrevido no estuário de Viana. A surpreender a Minha Terra com uma incursão inesperada na foz do Douro. E depois grosso e seguro a encher a Ria de Aveiro. E a retirar-me maroto e sabido. E a deixar um gosto salgado e sensual. Ao mesmo tempo, o meu corpo longo e ondeado a roçar-se nos extensos areais do Sul, toque aqui, toque ali. A costa alentejana cheia de refegos a resistir mal. E eu a rebolar-me nos areais da Comporta e de Tróia, guloso e lúbrico. A experimentar, obsceno, o estuário do Sado, crescendo demorado em vagares maliciosos. Maré-cheia, maré-vazia. Iludindo. Insinuando Setúbal e apontando a Lisboa. Fluo e refluo. Engrosso. Em maré viva, franqueio a barra do Tejo, transponho a Ponte 25 de Abril e espraio-me em plenitude pelo Mar da Palha. E refluo, e volto com mais vivacidade. Uma e outra vez. Venço a resistência da Ponte Vasco da Gama, encho esteiros e valados e alcanço Vila Franca. E, fecundador, inundo a lezíria. Avassalador, imenso, cósmico.
Durante muito tempo o meu espírito anda disperso pelo éter. Flutuo num limbo sem energia, nem densidade. Onde estou, por onde andei? Lentamente tomo consciência de mim. Estou alagado em suores, humores, fluidos. Parece-me que a viagem demorou um mês inteiro mas não durou mais que meia-hora. Foi suficiente para que o meu corpo e o meu espírito se unissem profundamente à Minha Terra. Dissolveram-se e voltaram a condensar-se. Inteiros. Refeitos. Apaziguados.
Nunca pensei que as saudades dela fossem tão grandes!