Há dias, ao fazer uma crítica a um conto de uma amiga brasileira, onde se falava de uma menina pobre de uma favela do Rio de Janeiro, que acabava por morrer numa cheia, disse que o conto puxava ao choradinho, estava exagerado e, nesse sentido, era panfletário.
Essa amiga respondeu-me de uma maneira tão sentida que trago aqui essa missiva, numa quadra em que o Carnaval, que de lá nos chega, parece mostrar que tudo é bonito e alegre.
Você vive na Europa, aqui no Brasil, a situação é bem diferente. Existem crianças e adultos que nunca saíram das favelas, porque favela não é um pequeno número de habitações no meio da cidade.
Favelas são cidades dentro da cidade. Não dá pra explicar, melhor olhar no Google Favela da Rocinha, um exemplo, com um número de habitantes e infra-estrutura de cidade grande.
Eu moro cercada por três favelas, uma delas, Jacarezinho. Quando eles decidem…fecham todo o comércio e mandam os onibus pararem. Você já imaginou não poder sair de casa?
Alice [a personagem] não é chororô, é uma realidade, basta ler os jornais e você vai ver que esta semana usaram uma criança pra rituais macabros. Semana passada mataram 5 outras de pancada…esta é a minha realidade.
Quando as pessoas morrem por aqui…levam o dia inteiro jogadas no meio da rua… esperando o rabecão…ou morrem na porta do hospital, ou de fome…ou de dengue! Dengue não existe em muitos países. Aqui morremos de dengue.
1-Os bairros no Rio estão desvalorizados. Antes, a Tijuca era elite…hoje em dia… Um imóvel vale 300.000 e pagam 70.000. Sem emprego, sem condições de mudar, sem direito a colocar a cara na rua.
2-As firmas e fábricas do meu bairro, fecharam as portas por conta dos assaltos. Virou bairro fantasma. Gente desocupada dorme nos jardins e praças públicas. As ruas fedem…
3- Não dá pra sair de casa na hora dos tiroteios e falsas blitz. Todo mundo sabe quando as drogas chegam porque soltam fogos. Alguém liga pra denunciar? Claro que não.
4- O Rio está um caos, virou um gueto, miséria é balinha de criança. Não escrevi para ser tocante ou piegas.
5- Eu mando artigo para jornais e revistas com o mesmo teor. Assino meu nome e estão lá… Se vou levar um tiro ou não…fiz minha parte e vou continuar reclamando.
6- Queria minha cidade limpa e menos violenta. Mas precisamos educar e minhas crianças não frequentam escolas.
Mas escutam histórias como esta e acham ”legal”. Se identificam…sei lá…
Quando vou aos educandários, sento com estas criaturinhas que olham de cara feita e barganho atenção com brinquedos. Não adianta nada dar livros, a maioria não sabe ler. Sabe que é absurdo o número de crianças que mal sabe escrever o nome?
Eles ouvem…ganham os brindes e não dão a mínima. Os poucos que fazem uma pergunta ou demonstram interesse… salvam o dia dos doidos que fazem este trabalho…grupo voluntário de visita aos meninos de rua…nem vou contar o que eles fazem com os brinquedos…
Não estou justificando o conto, estou apenas explicando que graças a ele, cheguei até você.
Quem sabe vc escreve alguma coisa sobre o assunto…talvez vá parar nas mãos de um outro escritor e mais pessoas tomem conhecimento….
É só um continho de nada…mas a internet é um meio de comunicação e tanto… Permitiu que eu daqui da ilha do caos, mandasse um pedido de socorro para além mar…
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Ah..desculpa…é uma história panfletária sim…estou usando para pedir ajuda e contar pra todo mundo.
Aqui tá faltando água, as escolas passam as crianças de ano e elas ganham diploma semi-analfabetas. Logicamente não conseguem emprego, e terminam repetindo a vida dos pais.
O que eu tenho medo e sei que a maioria também teme: Um dia as favelas vão descer e tomar o asfalto. Neste dia, a cidade, que abriga a cidade, vai virar poeira…